A Importância dos Mitos


A importância do Mito     
por Sílvia Rocha (em: O Mito da Jibóia, alquimia da floresta)  

“(...)o mito ajuda o homem a ultrapassar os seus próprios limites e condicionamentos, e incita-o  a elevar-se para onde estão os maiores.” (ELIADE, M. 1963, p.130)



            O mundo ocidental contemporâneo está imerso na razão, no logos. Há muito deixou para trás o pensamento subjetivo, emocional, mitológico. O que temos como consequência deste enfoque é um progresso material e tecnológico surpreendente mas com detrimento de sentido para a vida, o valor espiritual decaído e uma desconexão do ser humano com a natureza circundante e com sua própria natureza. Este afastamento ecológico hoje se volta contra a própria humanidade, a natureza responde e se mostra tão inteligível como organismo vivo que podemos apostar que é um deus ou deusa repreendendo seus filhos.

 O que encontramos hoje de  crise planetária diz respeito a própria Terra magoada que tenta se readaptar com seus terremotos, tsunamis e outros fenômenos, ao excesso de exploração do homem. O reflexo de nossa própria cisão interior, a natureza que ficou na sombra agora volta com todo seu poder para ser reintegrada.

A dialética natureza-cultura sempre fora um dos maiores desafios da humanidade. E temos percebido que a cultura ganhou uma força maior do que a natureza, nos últimos tempos trazendo o desequilíbrio e a descompensação. Mas nem sempre foi assim, e o ser humano  das sociedades tribais e que ainda hoje convivem harmonicamente com a natureza e nem por isso deixam de ter sua cultura. Embora subjugados e dominados pela sociedade ocidental urbana, muitos povos nativos não deixaram de ter seus costumes e continuar contando seus mitos e rituais e a viver auto-sustentavelmente na  natureza.

Para Campbell, existem dois tipos de mitologia, uma que nos aproxima da natureza e outra que nos coloca dentro de um grupo social. No primeiro, a tentativa não é a de controlar a natureza mas de estar de acordo com ela, e no segundo, a inserção e o pertencimento a um determinada sociedade. Ele acrescenta que atualmente estamos precisando de um mito que identifique o ser humano não mais com um grupo regional específico mas que os identifique com o planeta. 

“Hoje, temos que reaprender o antigo acordo com a sabedoria da natureza e retomar a consciência de nossa fraternidade com os animais, a água e o mar.” (CAMPBELL, J. 2007, P. 33)



A primazia da razão e sua visão utilitarista que quer dominar e tirar partido das coisas  explorando o mundo natural nos levou a resultados alarmantes. Se olhamos para uma floresta como se ela fosse um mero objeto e matéria prima que me fornece madeiras para fabricar bens para  consumo, é possível que em pouco tempo não haja mais floresta. Se olho e capto o ser da floresta, a energia, a vida que existe nela, minha atitude perante a floresta será de respeito à vida e de reverência como se ela fosse realmente uma deusa.

“Nossa alienação moderna em relação ao mito não tem precedentes. No mundo pré-moderno, a mitologia era indispensável. Ela ajudava as pessoas a encontrar sentido em suas vidas., além de revelar regiões da mente humana que de outro modo permaneceriam inacessíveis. Era uma forma inicial de psicologia. As histórias de deuses e heróis que descem às profundezas da  terra, lutando contra  monstros e atravessando labirintos, trouxeram à luz os mecanismos misteriosos da psique, mostrando às pessoas como lidar com suas crises íntimas.” (Breve História do Mito, Armstrong, K. – pag. 15)

  Este olhar mitológico, nos devolve a vida anímica, os símbolos contidos nos mitos trazem a energia que flui dentro e fora de cada um. O casamento de ambos modelos mentais: de razão e emoção, de logos e mitos, faz nos aproximar mais da totalidade e consequentemente da saúde psíquica que resulta da união das polaridades.

É da ausência do mito que padecemos, do olhar poético que fala à alma, que nos lembra da transcendência, que inclui valores às condutas dos seres. É por isto que nosso objeto de estudo é um mito. Principalmente  por isto também que  trazemos um mito brasileiro de um povo da floresta amazônica. Entrar nos mistérios da floresta é entrar em nosso território não desvendado de nossa psique. É também um reconhecimento e reconstrução da identidade brasileira da consciência cultural de nosso povo.

Sobre os mitos

            Hoje a palavra mito é usada para designar algo que não existe ou uma mentira. “Isto é um mito”, falamos quando algo não existe ou é um ideal ou até mesmo pessoas famosas que se tornaram ícone da sua época se tornam “mitos”. O sentido que usamos aqui é o mito, estória dos antigos, expressão da fantasia humana e ao mesmo tempo um evento que ocorreu e que continua acontecendo. Não é história pois é atemporal. O mito é fictício e ao mesmo tempo real, na medida que continua nos influenciando e nos preenchendo de significados e dando um sentido a nossa vidas.

O mito é verdadeiro pela sua eficácia, não nos importando se ocorreram os fatos ou não. Se o mito tem a capaciade de tocar os corações e almas, de transformar, se traz uma visão transcendente, ele é válido e nos leva como um guia para nosso próprio interior.

            Karen Armstrong (2005) fala de cinco aspectos importante do Mito;

1.    Todo mito se baseia na questão  da existência, da morte e do medo da extinção. A vida e seu sentido, reflexões existenciais fazem parte da constituição do mito.

2.    Os mitos são inseparáveis do ritual. Os ritos de passagem por exemplo organizam a consciência e tornam os mitos eternos, na medida que são vivenciados em gestos e formas ganhando corpo e experiência no aqui e agora.

3.    Falam da experiência transcendente, do desconhecido, do sem palavras. Um convite a entrada no silêncio profundo do ser, onde não alcançamos com a mente racional, no dia a dia comum e profano.

4.    Indica a atitude espiritual e psicológica para a ação correta como um código de ética. Os valores e comportamentos adequados ou esperados são “cantados” nos mitos.

5.    Fala de um outro plano que dá amparo a este, uma realidade invisível chamada de mundo dos deuses. O mito abre as portas para múltiplas dimensões como se fosse uma chave para os nossos mistérios.

Em suas próprias palavras:

                                   “A mitologia foi, portanto, criada para nos auxiliar a lidar com as dificuldades humanas mais problemáticas. Ela ajudou as pessoas a encontrarem seu lugar no mundo e sua verdadeira orientação.” (ARMSTRONG, K., 2005 Pag. 11)

O mito supre a necessidade humana de fantasiar, criar, ter idéias e imaginar. E nem por isto ele é menos real do que a história da humanidade. A mitologia assim como a religião são produzidas por estas faculdades, não sendo menores do que a ciência guiada pela razão. Tanto ciência quanto mitologia, tem suas formas opostas e complementares de expandir o conhecimento e a consciência humanas. A fantasia já foi considerada algo infantil e até patológico e agora pelos estudos dos mitos e também da psique, conferimos um status tal qual ao da  razão.

A experiência humana na terra pode ser apreendida tanto pelo pensamento quanto pela intuição, pela sensação ou sentimento. Todas as funções de igual importância e aproximação da realidade da vida. Como o ar, o fogo, a terra e a água constituem os elementos do planeta e também do ser humano. No caso, o pensamento seria o ar, o fogo, a intuição, a terra, a sensação e a água, o sentimento.

Para Mircea Eliade, o mito é real, é uma história sagrada portanto, verdadeira pois aponta para realidades. O mito é uma narrativa que concerne a um povo, um grupo cultural e que norteia e transforma a condição humana. Diferente de contos e fábulas que servem para entreter, os mitos ensinam as histórias primordiais e organizam uma sociedade.

“Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem.” (ELIADE, M. 2007, p. 18)

Um mito possui um ensinamento de ordem esotérica, e é vivido ou melhor, revivido através dos rituais. Faz parte do cotidiano do homem das sociedades arcaicas, reviver e reatualizar a história sagrada do mito. Para os homens das tribos, ele é capaz de repetir o que seus ancestrais e deuses foram capazes de fazer no início, através dos rituais colocam os mitos em movimento.  

Sobre o rituais

Num ritual, o tempo cronológico da experiência cotidiana  dá lugar ao tempo “sagrado” e vive-se realmente uma experiência  religiosa, com eventos fabulosos e significativos.

            “Reviver este tempo, reintegrá-lo o mais frequentemente possível, assistir novamente ao espetáculo das obras divinas, reencontrar os Entes Sobrenaturais e reaprender sua lição criadora é o desejo que se pode ler como em filigramas em todas as reiterações rituais dos mitos.. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar.” (ELIADE, M. 2007, p. 22)

É através da experiência do sagrado que o ser humano confere valor à existência, dando significado à realidade vivida. Ao contrário da história cronológica ao qual o homem contemporâneo ocidental está submetido, o mito vivo das sociedades tribais, favorece o homem a entrar numa dimensão sem tempo e recriar sua realidade.

            “A revolta contra a irreversibilidade do Tempo ajuda o homem a “construir a realidade” e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar o seu mundo.” (ELIADE, M. 2007, p. 124)

O mito é atualizado e reconfirmado pelos rituais e a repetição contínua destes confere uma apropriação do real viabilizando o acesso aos eventos transcendentes como parte da vida cotidiana. O mito oferece uma estrutura, revela modelos porém é aberto à criatividade e iniciativas humanas. A cada ritual, o mito é revivido e o mundo é recriado. Ao nível psicológico, a renovação permite que os ciclos da vida sejam encerrados para que novos possam nascer.

As revelações inerentes ao mito faz o homem reverenciar sua ancestralidade, suas raízes, seu engajamento na vida. Se ele sabe de onde vem, mais fácil saber a que veio e para quê, e a qualquer tempo no sem tempo do ritual re-organizar-se e re-criar-se. E na criatividade equipara-se com os deuses, num ato de criação do universo de sua própria vida.

            “(...) o rito força o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles. Direta ou indiretamente, o mito “eleva” o homem. Isto surge ainda mais claramente quando temos em mente que, nas socieades arcaicas, a recitação das tradições mitológicas é apanágio de alguns poucos indivíduos. Em algumas sociedades, os recitadores são recrutados entre os xamãs e os médicos-feiticeiros, ou entre os membros das confrarias secretas. Em todo caso, aquele que recita os mitos deve ter dado provas de sua vocação e ter sido instruído pelos velhos mestres. Ele é sempre alguém que se distingue, quer por sua capacidade mnemônica, quer pela imaginação ou o talento literário.” (ELIADE, M. 2007, p. 128)

Ampliando, Campbell nos fala de quatro funções do mito:

1.    A função mística ou metafísica. Ele nos coloca diante da maravilha do universo e do espanto do mistério. Os mitos explicam simbolicamente sobre a realidade das coisas e nos coloca diante da transcendência da vida.

2.    Função cosmológica. A dimensão científica do mito, que busca a ordem, a forma e origem do universo. Dão sentido ao mundo e abordam questões da nossa alma.

3.    Função sociológica. Que princípios éticos regem tal sociedade? O mito vai direcionar a norma de conduta de um povo. Ajuda a organizar a vida diária, que varia de lugar pra lugar.

4.    Função pedagógica ou psicológica. Os mitos nos dizem como viver uma vida humana, tratam das verdades humanas, facilitando tomadas de consciência.

Os mitos da mesma forma que os sonhos, pois são feitos do mesmo tecido essencial, expressam conteúdos simbólicos que ajudam nas passagens da vida, na transformação e no amadurecimento do ser humano, da infância `a idade adulta, da maturidade para a velhice e da velhice à morte.

            “Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte.” (CAMPBELL, 1989 – P. 16)

Campbell ainda nos fala que carecemos de mitos e rituais de passagem em nossa sociedade urbana contemporânea. Bastando ler as notícias do dia a dia , nos jornais e revistas que veremos os atos destrutivos causados por jovens que não tem direção por nunca terem sido instruídos em como viver em sociedade. Homens e mulheres que até os 40 permanecem na casa dos pais é um  outro exemplo desta carência.

“Eis o significado dos rituais da puberdade. Nas sociedade primitivas, dentes são arrancados, dolorosas escarificações são feitas, há circuncisões, toda sorte de coisas acontecem, para que você abdique para sempre de seu corpinho infantil e passe a ser algo inteiramente diferente.” ( CAMPBELL, J. – 1990, P. 8)

            Segundo Fabiano Txanabane Huni Kuin, na cultura Huni kuin, o jovem em seu ritual de passagem de menino para homem, dança durante todo o dia desde de manhã até a chegada da noite, sendo segurado pelos braços primeiro pelos jovens, depois pelos guerreiros e por último pelos mais velhos. Após esta exaustiva dança são levados para uma rede onde são balançados a noite toda pelas mulheres que cantam chamando as forças sagradas do povo. No dia seguinte os dentes do jovem são pintados com o preparo de uma raiz sagrada para o dente ficar forte. Tomam banho de ervas medicinais e cobrem o corpo com manto de Kene (tecidos com desenhos simbólicos do povo) e voltam para a rede onde ficam sete dias sem se mexer. Após estes sete dias saem da rede, tomam a vacina do Kanpun (veneno de sapo) para tirar a panema (preguiça, doença, má sorte) e vão caçar. É preciso trazer uma caça grande para mostrar que se tornou um guerreiro caçador forte.

              Em nossa sociedade quantas vezes ficamos doentes necessitando ficar sete dias de cama, forçando uma parada em nossas vidas corridas e estressantes?  Mas ao invés de aproveitar o momento para uma introspecção e nos prepararmos para o momento seguinte, ficamos chateados, tentando esquecer o que se está perdendo do dia a dia em frente a televisão.

                                    “ O acesso a uma condição superior é obtido com uma morte e uma regeneração simbólicas e rituais.” – (Zoja, L. – Nascer não basta, pag. 4)

            Os ritos de  passagens e iniciação segundo Zoja, preconizam uma morte que leva ao início de algo, como um novo começo. A morte como sinônimo de transformação e não de fim, e por isto bem vinda e não evitada. A estes momentos, carecemos de um espaco sagrado, fora de nossas demandas diárias e compromissos para uma dedicação maior ao mundo interno. O sagrado tem sido alijado e então decaímos ao espaço do racional e do material, com ausência de sentido que possa nutrir nossas almas.



            “(...) quando caiu a barreira dogmática e o rito perdeu a autoridade de sua eficácia, o homem precisou confrontar uma experiencia interior sem o amparo e o guia de um dogma e de um culto, que são a quintessência incomparável da experiência religiosa, tanto cristã como pagã.” (C. G. Jung, Psicologia e religião, 2007, par. 33)



No campo da psicologia, a análise pode ser vista como um rito, onde hora e local designados constituem o espaço sagrado para um processo de transformação e auto-realização, que Jung designa de processo de individuação. É o que veremos no cap. 2, sobre a obra de C. G. Jung. 



Mito e Psicologia

Os mitos voltam a ser valorizados, após longa era racionalista, pela psicologia complexa de Jung. Já em Freud teve um tímido reconhecimento. O mito de Édipo se encaixa perfeitamente no que Freud procurava sobre sua teoria da sexualidade que de forma cartesiana se orientou. Já sob o olhar de  Jung e da complexidade humana é a psique que se “encaixa” em vários mitos de várias culturas ao redor do mundo. Tal observação proporcionou a descoberta de uma estrutura da psique, os arquétipos, imagens arcaicas do inconsciente coletivo da humanidade.  Os mitologemas, núcleos essenciais do mito, são temas repetitivos em mitos de diversos povos do planeta, como uma memória padrão do que é ser humano.

Nos mitos e contos de fadas, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural como “formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno.” (JUNG, 1976 – p. 400)

Para Jung, o estudo dos mitos é algo essencial para psicologia analítica pois a dinâmica consciente-inconsciente é feita a partir de imagens que contém símbolos. Os símbolos são parte consciente e parte inconsciente, e são a chave para o movimento da libido que flui no eixo ego-self. Ego, centro da consciência se relaciona com o self, centro e totalidade da psique, através de símbolos. Nos mitos o que mais encontramos são imagens simbólicas que retratam as dinâmicas que ocorrem o tempo todo em nossa psique, exteriorizando conteúdos do inconsciente coletivo.

“Se o mito fosse simplesmente um resíduo histórico, teríamos que indagar a razão pela qual já não desapareceu há muito tempo no depósito de lixo do passado, continuando a influenciar através de sua presença até os mais altos cumes da civilização.” (JUNG, 1976 – p.469)

Além de oferecer modelos de vida, os mitos conduzem a uma consciência espiritual, nos levam a ter contato com a totalidade, oferecem saídas para conflitos, ensinam como vencer obstáculos.

Boechat nos conta do estudo feito por Lévi-Strauss da estratégia terapêutica  de um xamã Cuna, do Panamá.

            “Lévi-Strauss relata a abordagem de um paciente em dificuldade de parto, quando o xamã entoa um cântico que fala de um mito da tribo. Procura demonstrar que o canto narra locais, espíritos e ações que são um paralelo da própria estrutura anatômica da parturiente em parto distóxico: o útero, o bebê ali retido, o canal vaginal por onde o bebê deverá passar. Todos esses caminhos e vivencias sao mitologizados pelo canto mítico do xamã. A paciente, ouvindo o canto, entrando em contato com essas imagens, abre-se de forma irracional e para nós incompreensível para a totalidade misteriosa corpo-mente. E o parto é possível, o feto passa pelo canal do parto.” (BOECHAT, W. 2006, p. 200)

Boechat (2008, pag. 41) acrescenta que o processo de amplificação utilizado na análise como técnica de intervenção já existem há muito tempo, nas culturas do  xamanismo, sob a forma de contação de estórias ou de cantos de cura mitológicos como no exemplo citado acima.

Vemos com isto a capacidade terapêutica do mito de expressar algo que muitas vezes é difícil de colocar em palavras. A identificação com um mito, por si só já é terapêutica pois coloca o indivíduo na esfera do coletivo. Ele não se encontra mais sozinho com sua dificuldade. E o mito pode indicar um caminho, levar a energia para determinado ponto, ensinando, mostrando e fazendo–o descobrir novos horizontes.

“O efeito vivo do mito é vivenciado quando uma consciência superior, que se regozija com sua liberdade e independência, se confronta com a autonomia de uma figura mitológica, sem poder escapar do seu fascínio, tendo que prestar seu atributo à impressão subjugante. A figura atua porque tem uma correspondência secreta na psique do telespectador, aparecendo como um reflexo da mesma, o qual no entanto não é reconhecido como tal. A figura está cindida da consciência subjetiva e se comporta por isso como uma personalidade autônoma.” (JUNG, 1976 – p.484)

            Em sua “Mitopoiese da Psique” (2008), Boechat fala da capacidade da psique de criar mitos. Em diversas situações do cotidiano, o mito está presente. Podemos ser o herói matando os dragões da nossa sombra ou a deusa raptada para o mundo das trevas do inconsciente. Também podemos ter um encontro com a jibóia encantada que nos leva a conhecer os mistérios de nós mesmos e trazer uma medicina de cura.

Sobre um mito indígena

“(...) a natureza humana não muda muito, e que vários desses mitos, criados em sociedades que não poderiam ser mais diferentes da nossa, ainda tratam de nossos medos e desejos essenciais.” (ARMSTRONG, K. 2005 P.16)

Estudamos muito a Mitologia Grega, os gregos produziram mitos que muito influenciaram o pensamento ocidental. Mas e o que sabemos de nossa cultura nativa brasileira? Os verdadeiros brasileiros, cujas raízes estão aqui mesmo, de que forma nós brancos de raízes européias, podemos ser influenciados por sua cultura que também é nossa? Brancos ou mestiços, pois ser brasileiro é estar numa árvore de raízes múltiplas.

De que forma também, entrar nos mitos nativos é estar indo além de qualquer identidade nacional e penetrar nos mistérios do planeta como um todo? Afinal delimitação de terra é algo desconhecido pelos nativos, que se vêem como filhos da terra e como tal pensam em cuidá-la, retirando dela somente o que promove seu sustento.

Campbell em O Poder do Mito (1990) nos fala do mito que está por vir e será, segundo ele, um mito do planeta. Em suas palavras:

“Quando a terra é avistada da lua, não são visíveis, nela, as divisões em nações ou estados. Isso pode ser, de fato, o símbolo da mitologia futura. Essa é a nação que iremos celebrar, essas são as pessoas às quais nos uniremos.” (CAMPBELL, J. 1990 – pag. 34)